quarta-feira, 10 de abril de 2019

Professor, coloque um pouco de preguiça no seu dia

Na era do “Faço, logo existo” não nos damos conta de que a hora do trabalho não acaba mais e não sabemos mais o que é descanso

Crédito: Getty Images
“São os ociosos que transformam o mundo, porque os outros não têm tempo algum”
Albert Camus (1913-1960)
 Essa frase é o ponto de partida de Oswaldo Giacoia Junior em defesa da preguiça, em um programa exibido no Café Filosófico da TV Cultura em 2015. Vamos imaginar, porém, que estamos em qualquer escola enunciando um louvor a esse pecado capital. Naturalmente, todos iriam nos censurar, repelir e reprovar por estarmos na era do “Faço, logo existo”.
Diante dessa conjuntura, enfrentamos desafios como a meta de trabalhar 18 horas diárias durante sete dias da semana. Diante de outros professores e demais colegas de trabalho, reiteramos o esforço para responder e-mails, atender aos pais, organizar atividades, cumprir a burocracia das escolas. Impomos a nós mesmos uma grande carga de estudo, pesquisa, metas. Yes, you can (Sim, você consegue - em tradução livre) tornou-se o slogan dos profissionais do século XXI. Em nome disso, sabotamos corriqueiramente as nossas horas de lazer e até mesmo de alimentação. A hora de trabalho não acaba nunca. Não se sabe mais o que é descanso –  há tempos, não se sabe mais o que é ócio. Não temos mais direito à preguiça. Na sociedade de desempenho, a preguiça se transformou em uma forma de resistência diante da aceleração desenfreada trazida pela Revolução Tecnológica.
Para pensar sobre isso, vamos refletir sobre a noção de tempo de duas décadas atrás. Eu comecei a minha carreira como professor em 1999. Não usava e-mail, nem celular. Não postava conteúdos na internet, não usava Powerpoint. Eram apenas papel e lousa. A tecnologia chegou com aquela ideia da praticidade e elevação do conhecimento. Com ela, nosso desenvolvimento da capacidade técnica é inegável. Também com ela, é inegável a dispersão maior dos alunos, a proliferação de terra planistas e, sobretudo, o aumento da carga de trabalho. Não por acaso, o filósofo Byung-Chul Han designa o nosso tempo como Sociedade do Desempenho que gera a Sociedade do Cansaço.
Nessa condição, a preguiça é um substantivo indesejado em qualquer ambiente, em qualquer idiossincrasia, em qualquer conversa cujos parâmetros são pautados na produtividade. Entretanto, quem nunca se perguntou: “Para quê tanto trabalho?” ou “Sou apenas o que produzo?”. Essas perguntas feitas em primeira pessoa perpassam por mim, como psicanalista recém-formado e alguém que vive a sala de aula, ouvindo as queixas dos meus pares e também de meus alunos. Não posso dizer que no ano de 1999 era igual. Sem dúvida, havia outras insatisfações, mas as utopias em nome do avanço tecnológico tornaram-se distopias. Cada vez mais a pós-modernidade trouxe o nivelamento do indivíduo ao da máquina. De 1999 a 2019, a percepção do tempo mudou. O tempo do relógio continua o mesmo, mas a nossa vida está a cada dia mais acelerada.
Essa percepção do tempo não é banal. “Aceleração” tanto se refere a algo dentro de nós (“estou acelerado”), quanto a algo fora de nós (“a aceleração da tecnologia”). Poucos percebem que a noção de tempo não pode se banalizar com clichês como “Tempo é dinheiro”. Sobre isso disse Antonio Candido: “Tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida, é esse minuto que está passando. Daqui a 10 minutos eu estou mais velho, daqui a 20 minutos eu estou mais próximo da morte. Portanto, eu tenho direito a esse tempo. Esse tempo pertence a meus afetos”. Essas palavras de Antonio Candido denunciam a monstruosidade que praticamos contra nossa individualidade nessa era tecnológica. Logo, o tédio pode ser, sim, uma forma de resistência, um tédio falaz, conciliador do eu consigo mesmo. Temos que resistir ao Yes, you can. O vazio e o nada são elementos que nos ajudarão a criar a experiência que falta da própria individualidade.
Jorge Larrosa diz: “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca”. Na vivência da sociedade do desempenho, muitas coisas se passam, mas pouco ou quase nada nos acontece. Nessa era tecnológica, produzimos cada vez mais – entretanto, a experiência é cada vez mais rara. Isso se dá pelo excesso de estímulos ligados às redes sociais. Esse excesso não é experiência, pois tem como característica a volubilidade perene.
Para tentar explicar essa falta da experiência, é possível analisar o que é psiquismo, segundo Maria Rita Kehl em o Tempo e o Cão. Psiquismo é uma instância temporal, é o trabalho de tentar representar um objeto faltante sobre um vazio. Nesta era da aceleração, não há vazios ou ao menos não percebemos mais os vazios. Com o excesso de tarefas, de informações e de estímulos, nós nos tornamos seres fragmentados da nossa própria subjetividade. Falta-nos a contemplação diante de nossos afetos. Falta-nos repouso, falta-nos ócio, falta-nos a valorização de nós mesmos.
A experiência é a consciência sobre o tempo vivido, projetado pelo indivíduo. Temos que perceber que o tempo não flui homogeneamente. Há a noite tranquila do bebê, a noite breve e intranquila do professor, a noite infindável dos ansiosos e, agora, a noite não dormida da sociedade do desempenho. É inquestionável que os nossos ritmos temporais foram subjugados pela tecnologia, tentando nos transformar em máquinas. É o tempo sem tempo, que subjuga a amizade, o lazer, o religioso, o sonho.
E o sonho é, por vezes, a própria experiência. Precisamos dormir para sonhar. Em um de seus textos, o Menino que Escrevia Versos, Mia Couto narra uma linda conversa entre o menino e o médico:
“—Dói-me a vida, doutor. (...)
— E o que fazes quando te assaltam essas dores?
— O que melhor sei fazer, excelência.
— E o que é?
— É sonhar.
 Esse pequeno trecho do autor moçambicano pode representar dois aspectos muito relevantes e sintomáticos da sociedade contemporânea: a dor e o sonho. A dor faz parte da vida e de qualquer atividade profissional; o sonho só vem quando o enxergamos com um pouco de tempo para nós, com um pouco de tédio, com “nãos” e com a boa e leve preguiça. Assim transformamos o mundo.
Por Francisco Gonçalves Lima/Nova Escola

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