Indisciplina, raiva manifesta em agressividade, desatenção. O
emaranhado de comportamentos advindos da subjetividade dos alunos tem
efeito bumerangue: provocam outras emoções no professor e podem
desencadear frustração, perda de ânimo, impotência. Como um dos lugares
privilegiados para as interações presenciais na contemporaneidade, a
escola é o ambiente perfeito para o engatilhamento de processos
emocionais. O que não se sabia, até agora, é o quanto essas emoções
influenciam no aprendizado, seja de forma negativa, ou positiva.
A neurociência tem trazido informações importantes para entendermos a
relação entre comportamento e função cerebral. Sabe-se hoje que
perturbações que envolvem a sensorialidade, a percepção, o aprendizado, e
a capacidade de lidar com problemas estão muitas vezes associadas às
deficiências do relacionamento interpessoal, insegurança e baixa
autoestima.
Segundo estudos do professor emérito de Psicologia Infantil e
Psicobiologia da Universidade de Edimburgo, Colwyn Trevarthen, e do
professor do departamento de Psiquiatria e Ciências do Comportamento da
Universidade da Califórnia, Allan Schore, as disfunções ou patologias
mais graves que envolvem a emoção, a comunicação e o aprendizado podem
ocorrer precocemente, desde o pré-natal, nos primeiros estágios do
desenvolvimento do embrião. Isso quer dizer que muitas das alterações
psicológicas da infância e do estado do adulto podem ter sua origem nos
primeiros estágios do desenvolvimento do cérebro. Segundo a denominação
de Colwyn Trevarthen, essas patologias poderão integrar os Distúrbios de
Motivação ou da Empatia, que em algumas situações só se manifestam na
adolescência, por ocasião do processo de poda de sinapses.
Um relatório da Academia Americana de Pediatria apresenta um quadro
de eco-bio-desenvolvimento neuropsíquico que ilustra como o início de
experiências e influências ambientais pode deixar uma assinatura
duradoura sobre as predisposições genéticas que afetam a arquitetura
cerebral emergentes para a saúde a longo prazo. O relatório também
examina extensa evidência dos impactos negativos do estresse tóxico,
oferecendo pistas sobre como mecanismos causais que ligam o contato com
adversidades desde cedo podem provocar impedimentos posteriores na
aprendizagem, no comportamento, e no bem-estar, tanto físico, quanto
mental.
O conceito de estresse tóxico foi desenvolvido pelo Centro de
Desenvolvimento da Criança, da Universidade de Harvard, para explicar
como a criança que aciona com frequência seu sistema de reação ao
estresse, sem contar com um adulto que a acolha e acalme, pode sofrer de
uma série de problemas emocionais no futuro. Tirando os motivos mais
drásticos de situações de abusos físicos, fome, ou violência doméstica,
os pesquisadores indicam que certos acontecimentos corriqueiros são os
principais desencadeadores do estresse tóxico: frustração ou aflição
frequentes, como brigas na escola ou na família, crítica e a
desaprovação dos pais, excesso de atividades e o bullying.
Além disso, as pesquisas também têm chamado a atenção para as
características sociais às quais a infância está submetida na
contemporaneidade. A preocupação excessiva dos pais com seus filhos, e a
consequente agenda de compromissos diários aos quais as crianças são
submetidas cada vez mais cedo, estão tornando as crianças estressadas, o
que, a longo prazo, pode trazer consequências para a saúde física e
emocional. Estudo da pesquisadora Ana Maria Rossi, presidente da
International Stress Management Association no Brasil (Isma-BR),
realizado com 220 crianças, entre 7 e 12 anos, revelou que oito em cada
dez pais foram atrás de ajuda profissional por causa da alteração de
comportamento de seus filhos.
Os estudos do diretor do programa de Liderança em Educação Urbana da
Universidade de Colúmbia, nos EUA, Brian Perkins, também têm apontado
para as influências do ambiente no aprendizado. Há quatro anos
acompanhando escolas públicas em favelas cariocas, e em outros países
com zonas de conflitos, como China, África do Sul e Índia, Perkins
aponta como a violência é prejudicial ao processo de aprendizagem.
Segundo o pesquisador, quando a adrenalina entra no sistema cerebral,
faz o córtex se desligar, tornando impossível processar informações com
essa parte. É na área do córtex cerebral que ocorrem as funções da
linguagem e das habilidades processuais e analíticas. Se a mente da
criança está ligada ao medo e à sobrevivência ao longo do dia, ela não
está pensando.
“A ciência mostra que o processo de aprendizagem é afetado
negativamente por situações de medo. É preciso resolver a violência para
que haja um ambiente favorável ao estudo”, afirmou o pesquisador em
entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, em abril último.
Em entrevista à revista Educação em 2013 (Ed. 196), Perkins apontou
que, em todos os países em que pesquisa, percebe pelo menos uma
característica em comum entre os professores que encontra: uma grande
apatia. A maioria, diz ele, está sem estímulo para se aprimorar e sem
sentir prazer em dar aulas.
Assim se dá o efeito bumerangue: ao mesmo tempo que percebem esses sintomas na escola, os professores se tornam vítimas deles.
Chama o psicólogo
A percepção dos professores de que algo não vai bem no
desenvolvimento psicológico das crianças foi detectada pela pesquisa A
visão dos professores sobre a educação no Brasil, realizada pela
Fundação Lemann e divulgada em março último. A pesquisa ouviu mil
professores de escolas públicas do Ensino Fundamental I e II de zonas
urbanas de todo o país. Dentre outros dados, foi levantada uma lista de
19 fatores que precisam ser enfrentados com mais urgência na visão dos
educadores. Para 21% deles, a “falta de acompanhamento psicológico para
alunos que precisam” é apontada como o fator mais urgente para se tratar
na escola. O item foi mencionado por 38% dos entrevistados entre os
três fatores mais urgentes a serem resolvidos pela educação no Brasil.
Em consequência, a segunda questão mais destacada pelos professores foi a
indisciplina dos alunos (mais urgente para 14% e dentre as três mais
urgentes para 34%).
“Quando um professor dá à figura do psicólogo toda essa importância
acredito que está, na verdade, pedindo socorro diante de uma diversidade
às vezes vertiginosa de comportamentos, sentimentos e emoções”, aponta a
psicóloga, psicopedagoga e diretora-geral do Colégio Graphein, em São
Paulo (SP), Nívea Maria de Carvalho Fabrício. Para ela, antes de pensar
em um especialista externo ao cotidiano escolar intervindo diretamente
com os alunos, é necessário investir na capacitação dos educadores,
tanto para reconhecer e compreender a importância das emoções na
aprendizagem, quanto para deixá-los mais aptos a agir. “É claro que em
alguns casos será necessária a ajuda de um especialista externo. Mas até
para que isto seja feito da melhor maneira é fundamental uma
consciência adequada sobre os aspectos mais subjetivos dos alunos”,
sinaliza Vera Zimmermann, psicóloga, psicanalista e coordenadora do
Centro de Referência da Infância e Adolescência (CRIA), da Unifesp.
A relação entre professores e psicólogos traz como pano de fundo o
embate entre o papel da escola e da psicologia – importante notar a
influência da psicologia na educação e no entendimento sobre as crianças
desde a segunda metade do século 20, principalmente a partir dos
estudos do psicopedagogo Jean Piaget (1896-1980).
“É essencial em primeiro lugar compreendermos que o espaço escolar
não é um local terapêutico. Isso significa que lidar com as emoções na
escola não tem nada a ver com cuidar da saúde emocional individual das
crianças e jovens. Não faria sentido, porque o professor não é o
profissional capacitado para isso. Isso não quer dizer, porém, que ele
não vá ter de lidar com as emoções dos alunos, já que elas estão
presentes todo o tempo e vão influenciar diretamente no resultado do seu
trabalho”, avalia Vera Zimmermann.
Essa distinção de papéis nem sempre se mostra tão clara,
principalmente na relação com a comunidade. Professores e equipe escolar
são muitas vezes vistos como especialistas capazes de orientar os pais
nas dificuldades emocionais de seus filhos em casa. “Diversas vezes pais
de alunos vinham nos procurar pedindo socorro por não saberem o que
fazer diante de comportamentos dos filhos. Sentia uma pressão muito
grande para ter respostas e apresentar soluções que estavam além do meu
alcance”, relata Marcelo Lovato, psicólogo que recentemente deixou a
sala de aula, após 15 anos como professor de língua estrangeira.
Lovato chegou a atuar como psicólogo dentro de ambientes escolares,
realizando ambulatórios psicológicos para alunos e professores. “Depois
de toda essa experiência, quando penso na questão das emoções na escola,
a primeira coisa que me vem à mente é ‘e quem cuida do educador?’,
relata. E lembra que este cuidar passa pela oferta de conhecimento sobre
os caminhos para manejar as emoções em sala de aula – o que ajudaria a
diminuir a incidência, por parte dos professores, de sentimentos como
a frustração, a impotência e a raiva.
Patologia ou comportamento
A consciência adequada sobre os aspectos subjetivos dos alunos se
mostra especialmente frágil, de modo geral, na formação dos educadores
brasileiros. “Os professores são apresentados de forma muito superficial
aos aspectos do desenvolvimento emocional e sua relação com a
aprendizagem. Com isso, correm o risco de não enxergar seus alunos de
uma maneira integral – ou seja, como dotados de cognição e emoções”,
aponta Maria Augusta Salin Gonçalves, filósofa, doutora em Educação pela
UFRGS e autora, dentre outros livros, de Construção da identidade moral
e práticas educativas (Papirus Editorial).
Essa defasagem na formação contribui para uma situação na qual, a
menos que seja realizado um processo de capacitação e aprendizado
contínuos, os profissionais podem ter sérias dificuldades diante da
demonstração de fragilidade emocional de um aluno, na hora de mediar
conflitos ou para construírem, eles mesmos, sentimentos mais saudáveis
em relação à sua atividade profissional.
Vale lembrar ainda que embora educadores não tratem diretamente da
saúde de emoções e sentimentos individuais das crianças e jovens (papel
do psicólogo e, em casos diretamente ligados à aprendizagem, do
psicopedagogo), existe um campo considerável de ação a ser desempenhado
por eles, sobretudo no sentido de promover condições favoráveis à
aprendizagem. Assim, raiva, ansiedade, medo, tristeza (dentre outros
comportamentos) necessitam, sim, ser identificados e elaborados no dia a
dia de professores e alunos.
Uma das dificuldades reais enfrentadas pelos professores, entretanto,
é como identificar as fronteiras entre comportamento e patologia. “Um
perigo que precisa ser evitado a todo custo é o de tratar como
patologias comportamentos e atitudes que são naturais na relação dos
alunos com a sua realidade escolar”, explica Elaine Prodócimo,
professora da Faculdade de Educação da Unicamp e pesquisadora da
agressividade na escola.
Segundo ela, uma criança que não para sentada na cadeira pode apenas
estar sentindo falta, por exemplo, de utilizar mais o corpo em suas
atividades escolares – o que poderia ser sanado por profissionais da
própria escola, a partir de conhecimentos da área da educação e do
desenvolvimento. De um ponto de vista mais apressado, essa mesma criança
poderia ser considerada portadora de algum distúrbio emocional, que só
poderia ser tratado com a ajuda de um psicólogo. O limite é tênue, mas
tentar clareá-lo é essencial.
Mesmo quando é necessária a intervenção de um especialista de saúde, o
professor que tiver conseguido uma percepção mais clara do processo do
aluno poderá oferecer informações valiosas, criando uma parceria em
prol do desenvolvimento desta criança ou jovem. “É importante que este
clima de parceria também se estabeleça entre os profissionais dentro da
escola – e que os educadores contem com espaço para discutir suas
dúvidas e problemas relativos ao seu trabalho”, aponta Luciana Lapa,
psicóloga, pesquisadora e orientadora educacional da Escola Stance Dual,
em São Paulo (SP).
“Com mais preparo e clareza sobre como atuar, e contando com o
respaldo de outros profissionais escolares na troca de experiências, o
educador consegue, ele mesmo, observar-se com mais nitidez. E isso é
importante para que ele possa trabalhar na árdua tarefa de manejar os
próprios sentimentos, principalmente a frustração”, explica Regina
Kastesckas, recém-aposentada após mais de 20 anos como professora e
diretora de escolas públicas na cidade de Osasco (SP). A observação de
Regina foi repetida por todos os educadores ouvidos pela reportagem: a
frustração foi apontada por todos como o sentimento negativo que mais se
mostra na relação do professor na rotina de seu trabalho. Para
compreender essa intrincada linguagem dos sentimentos e das emoções nas
relações que se estabelecem na escola, levantamos, nas próximas páginas,
alguns exemplos de situações e indicações de propostas para manejá-las.
Clima escolar |
Atuar na capacitação de educadores em relação às próprias emoções e
oferecer possibilidades de atuação assertivas em sala de aula são ações
do projeto Cuca Legal, promovido em parceria entre a Universidade
Federal de São Paulo e a Secretaria de Estado da Educação. Segundo a
neuropsicóloga e educadora Adriana Fóz, uma das coordenadoras do
projeto, a experiência em dezenas de escolas mostra que o processo de
conscientização toca os educadores principalmente quando eles percebem
a relação direta e concreta entre as emoções e o aprendizado. “Nós
fazemos questão de oferecer dados e estudos que deixam bastante claro
que a ansiedade, por exemplo, tende a rebaixar a capacidade de atenção
e, consequentemente, dificultar a assimilação de conteúdos”, explica
Adriana. A apresentação de dados científicos e que partem da concretude das reações cerebrais é importante, segundo a especialista, principalmente porque ainda é possível verificar uma certa resistência em assumir os afetos e emoções como uma parte naturalmente integrante do cotidiano escolar. “Os comportamentos que dificultam o clima das aulas – como as agressões verbais e indisciplina – são geralmente os mais associados às emoções”, explica Adriana. Ainda segundo a especialista, é necessário lembrar que mesmo com um clima harmonioso, as emoções e sentimentos poderão interferir positivamente ou negativamente no processo de aprendizagem. O clima escolar, porém, tem extrema importância e sua construção também tem conexão direta com o universo emocional. O aspecto social da escola (no qual crianças e jovens compartilham com pares e figuras de autoridade, agindo na coletividade) faz com que ela seja palco natural dos mais variados tipos de conflitos. “As crianças e jovens vivem situações emocionais diversas com as quais nem sempre sabem lidar muito bem. O fundamental é ajudar no esclarecimento sobre esse mundo interior mais subjetivo, trazendo mais consciência para esse aluno. Ele precisará entender, de acordo com a sua idade, como ajudar a construir um ambiente coletivo que seja saudável para todos – e que para isso é necessário cuidar das relações e, consequentemente, das próprias emoções” , aponta a doutora em psicologia escolar Luciana Fioravante, diretora escolar do Colégio Equipe, em São Paulo (SP). |
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