Para Jacques Lacan, o bebê só distinguirá o que lhe é interno ou externo
ao reconhecer-se, ou ao Outro, na visão projetada no espelho | Foto:
Shutterstock
Na Paris dos anos 1920, o psiquiatra e psicanalista francês Jacques
Lacan (1901-1981) frequentava livrarias e se reunia com os surrealistas,
assistia com entusiasmo à leitura pública de Ulisses, de James Joyce
(1882-1941), ligando-se a escritores, poetas, artistas plásticos,
filósofos. Formado em medicina, Lacan orientou-se desde o começo de sua
vida profissional para a psiquiatria e a psicanálise. Mas, por seus
interesses e suas práticas mais abrangentes que os da psicanálise da
primeira geração, nunca foi reconhecido pela Sociedade Psicanalítica de
Paris (SPP), para a qual apresentava trabalhos que não eram levados em
conta.
Seu anticonformismo parecia causar irritação em seus pares na
psicanálise de então. No entanto, fora dos círculos psicanalíticos, era
considerado brilhante intelectual. Foi o único, entre os grandes
intérpretes da história do freudismo, a dar à obra freudiana uma
estrutura filosófica e a tirá-la de suas bases biológicas, sem com isso
cair no “espiritualismo”.
A partir de 1936, Lacan iniciou-se na filosofia hegeliana, quando
assistia ao seminário de Alexandre Kojève (1902-1968). Frequentava
sedes de revistas culturais e participava de reuniões no Collège de
Sociologie, onde conviveu com diversos intelectuais, entre os quais o
escritor Georges Bataille (1897-1962), cuja esposa viria a ser a segunda
mulher de Lacan. Desses anos de grande ebulição intelectual e teórica
tirou a certeza de que a obra freudiana devia ser relida “ao pé da
letra” e à luz da tradição filosófica alemã.
Em 1938, a pedido de Henri Wallon (1879-1962) e do historiador Lucien
Febvre (1878-1956), Lacan fez um balanço sombrio das violências
psíquicas próprias da família burguesa em um verbete da Encyclopédie
française. Constatando que a psicanálise nasceu do declínio do
patriarcado, passou a apelar para a revalorização da função simbólica da
psicanálise no mundo cada vez mais ameaçado pelo fascismo.
Lacan sempre manteve fortes relações intelectuais fora do meio
psicanalítico: com o linguista Roman Jakobson (1896-1982), com o
antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009), com os filósofos Maurice
Merleau-Ponty (1908-1961) e Martin Heidegger (1889-1976), com os
surrealistas, entre outros. Sob influência desses pensadores, adotou um
questionamento profundo sobre o estatuto da verdade, do ser e do que
significa considerar-se “sujeito” diante da complexidade do mundo
contemporâneo. Da linguística, extraiu sua concepção de significante e
de um inconsciente organizado como linguagem; da antropologia, deduziu a
noção de simbólico, que utilizou na tópica SIR (simbólico, imaginário,
real), assim como sua releitura universalista da interdição do incesto e
do complexo de Édipo.
Durante dez anos, duas vezes por mês, Lacan realizou seu seminário
público, aberto a quaisquer interessados, comentando sistematicamente
todos os grandes textos do corpus freudiano e dando origem a uma nova
corrente de pensamento: o lacanismo, cujos preceitos seriam discutidos
não apenas por psicanalistas, mas por intelectuais de peso como Michel
Foucault (1926-1984) e Gilles Deleuze (1925-1995).
Em seus seminários, atraiu muitos alunos, fascinados por seu ensino e
desejosos de romper com o freudismo acadêmico da primeira geração
francesa de psicanalistas. Começou então a ser reconhecido ao mesmo
tempo como didata e como clínico, fundando duas escolas de psicanálise,
que se dissolveram por divergências internas. Seu senso agudo da lógica
da loucura, sua abordagem original do campo das psicoses e seu talento
discursivo lhe valeram, ao lado de Françoise Dolto (1908-1988), um lugar
especial aos olhos da jovem geração psiquiátrica e psicanalítica.
Em 1951, comprou uma casa de campo a cerca de cem quilômetros de
Paris. Retirava-se para lá aos domingos, onde recebia seus pacientes e
dava recepções. Ao lado de sua segunda esposa, Sylvia Bataille, que era
atriz, fazia teatro para os amigos, fantasiava-se, dançava, divertia-se e
às vezes usava roupas extravagantes. Nessa casa colecionava um número
considerável de livros que, ao longo dos anos, formaram uma imensa
biblioteca que demonstrava o tamanho de sua paixão pelo trabalho
intelectual. Em um cômodo que dava para o jardim, organizou um
escritório repleto de objetos de arte. Nessa casa, pendurou o famoso
quadro de Gustave Courbet (1819-1877) A origem do mundo.
Depois da morte de Lacan, em 1981, o lacanismo fragmentou-se numa
multiplicidade de tendências, grupos, correntes e escolas, sendo
implantado de maneiras diversas em muitos países, tendo o Brasil e a
Argentina alguns de seus representantes mais férteis. Entre as
contribuições mais importantes de Lacan para o campo da educação estão
as noções de estádio do espelho e de eu ideal.
O estádio do espelho e o eu ideal
Segundo Lacan, nos primeiros meses de vida de uma criança, não há nada parecido a um eu, com suas funções de individualização e de síntese da experiência. Falta ao bebê o esquema mental de unidade do corpo próprio que lhe permite constituir esse corpo como totalidade, assim como distinguir interno e externo, individualidade e alteridade.
Segundo Lacan, nos primeiros meses de vida de uma criança, não há nada parecido a um eu, com suas funções de individualização e de síntese da experiência. Falta ao bebê o esquema mental de unidade do corpo próprio que lhe permite constituir esse corpo como totalidade, assim como distinguir interno e externo, individualidade e alteridade.
É só entre o sexto e o décimo oitavo mês de vida que tal esquema
mental será desenvolvido. Para tanto, faz-se necessário o reconhecimento
de si na imagem do espelho ou na identificação com a imagem de outro
bebê. Ao reconhecer pela primeira vez sua imagem no espelho, a criança
tem uma apreensão global e unificada de seu corpo. Assim, essa unidade
do corpo será primeiramente visual e é condição fundamental para o
desenvolvimento psíquico do bebê.
As imagens determinam a vida do indivíduo, representam um dispositivo
fundamental de socialização e individuação, fazem parte da realidade
psíquica. A partir delas, nasce a fantasia. Nesse processo, surge um
conceito reelaborado por Lacan, a partir de Freud: o eu ideal, que
representa a ideia que o indivíduo tem de si mesmo na forma arcaica e
que delimitará suas identificações posteriores.
O eu arcaico, segundo Freud, expulsa o insatisfatório e internaliza
as experiências satisfatórias. Para Freud, a constituição do eu se dá de
dentro para fora; para Lacan, ao contrário, se dá de fora para dentro.
Segundo o francês, para orientar-se no pensar, no sentir e no agir, para
aprender a desejar, para ter um lugar na estrutura familiar e social, a
criança precisa inicialmente raciocinar por analogia (no sentido da
mimesis grega): imitar uma imagem na posição de tipo ideal, adotando,
assim, a perspectiva de um Outro. Tais operações de imitação são
importantes para a orientação das funções cognitivas e afetivas, e têm
valor fundamental na constituição e no desenvolvimento subsequentes do
eu em outros momentos da vida madura.
Na alienação do sujeito ao Outro, o infans (o “sem palavras”) se
identifica e se experimenta. Começa então a circulação do desejo:
fazer-se reconhecer, ser desejado e desejar o desejo do Outro. Imagem,
palavra, alimento e cuidados são expressões dos rumos da pulsão, em suas
diferentes modalidades: oral, anal, visual e vocal. Esse processo vai
inscrevendo as representações no inconsciente, o que dará espaço ao
processo de estruturação psíquica do sujeito sustentado pelo desejo do
Outro.
Depois de reconhecer-se no espelho, as imagens dos irmãos, do pai, da
mãe e de seus substitutos sociais farão parte da “imagem ideal”,
necessária para a socialização. Esse dispositivo permitirá a entrada da
criança numa trama sócio-simbólica, cujo núcleo é a família, mas que se
compõe de outras figuras com função de autoridade. Entre esses
personagens, o professor tem papel fundamental.
Dessa forma, a criança introjeta uma imagem que vem de fora (do
espelho e dos humanos que a cercam). Por meio do olhar, da linguagem, do
toque, da entonação da voz do Outro e de outros aspectos da comunicação
inconsciente, se estabelece uma intensa troca (ou uma falha também
imensa) entre a criança e a cultura.
Assim nasce o sujeito lacaniano, aquela estrutura com a função de ser
o lugar em que o eu pode reconhecer-se, mas onde sua autonomia total se
quebra diante da dependência do externo.
Outros conceitos desenvolvidos por Lacan
Gozo e perversão
Para Lacan, o conceito de gozo implica a ideia de transgressão da lei: desafio, insubmissão ou escárnio. O gozo, portanto, participa da perversão, teorizada por Lacan como um dos componentes estruturais do funcionamento psíquico. Na perversão, o sujeito só encontra prazer quando a lei é transgredida.
Para Lacan, o conceito de gozo implica a ideia de transgressão da lei: desafio, insubmissão ou escárnio. O gozo, portanto, participa da perversão, teorizada por Lacan como um dos componentes estruturais do funcionamento psíquico. Na perversão, o sujeito só encontra prazer quando a lei é transgredida.
Simbólico, Imaginário, Real
Essa tríade de conceitos, a partir de 1953, forma uma estrutura que, segundo Lacan, passaria a determinar e equilibrar as relações intrapsíquicas:
– O simbólico designa a ordem civilizatória a que o sujeito está ligado, como um lugar psíquico em que são reconhecidos os discursos produtores de “verdades”.
– O imaginário se define como um lugar no eu onde são acolhidos os fenômenos de representações ilusórias, utilizados para aplacar as vivências angustiantes advindas do real.
– O real designa qualquer fenômeno, aquilo que ainda não tem representações ou simbolizações no eu, que está no plano das vivências corporais ou emocionais e que, em geral, causa angústia ou sofrimento.
Essa tríade de conceitos, a partir de 1953, forma uma estrutura que, segundo Lacan, passaria a determinar e equilibrar as relações intrapsíquicas:
– O simbólico designa a ordem civilizatória a que o sujeito está ligado, como um lugar psíquico em que são reconhecidos os discursos produtores de “verdades”.
– O imaginário se define como um lugar no eu onde são acolhidos os fenômenos de representações ilusórias, utilizados para aplacar as vivências angustiantes advindas do real.
– O real designa qualquer fenômeno, aquilo que ainda não tem representações ou simbolizações no eu, que está no plano das vivências corporais ou emocionais e que, em geral, causa angústia ou sofrimento.
Significante
Esse termo foi introduzido por Ferdinand de Saussure (1857-1913) para designar a parte do signo linguístico que remete à representação psíquica do som (ou imagem acústica), em oposição à outra parte, ou significado, que remete ao conceito.
Esse termo foi introduzido por Ferdinand de Saussure (1857-1913) para designar a parte do signo linguístico que remete à representação psíquica do som (ou imagem acústica), em oposição à outra parte, ou significado, que remete ao conceito.
Retomado por Lacan como um conceito central em seu sistema de
pensamento, o significante transformou-se, em psicanálise, no elemento
do discurso (consciente ou inconsciente) que fará parte de uma série
que, por sua vez, determinará os atos, as palavras e o destino do
sujeito, à sua revelia e de acordo com uma nomeação que vem do
simbólico.
Por
/ Revista Educação
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