quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Como exatamente os povos africanos se comunicam com tambores?

E como o funcionamento desse método é essencial para entender a história das telecomunicações

 

Um bit é uma unidade de medida, como um quilo, um litro ou um metro. Só que em vez de massa, volume ou distância, ele serve para medir algo um pouco mais abstrato: informação.
Quando alguém pergunta (por exemplo) se você tem filhos, só há duas respostas possíveis: “sim” ou “não”. Essa resposta contém, sem tirar nem pôr, um bit.
Um bit é uma escolha entre duas possibilidades quaisquer: sim e não, preto e branco, direita e esquerda. Ou, se você for um computador, 0 e 1. O famoso código binário, alicerce de tudo que se faz no Vale do Silício.
Hoje em dia, um bit é carne de vaca, coisa banal. Seu celular processa 30,2 milhões deles cada vez que você ouve em Shape of You, de Ed Sheeran. Isso significa que a quantidade de informação que um alto falante precisa receber para fazer o ar vibrar de forma que você ouça a canção equivale a 30,2 milhões de perguntas do tipo “sim ou não”.
Houve uma época, porém, em que transmitir um bit (um mísero bit, unzinho) era um esforço homérico. E “homérico”, aqui, é ao pé da letra: estou falando da Guerra de Troia.
Quando a cidade lendária caiu na trapaça do cavalo de madeira, os gregos precisaram dar um jeito de enviar a boa notícia à cidade-estado de Micenas, a 600 quilômetros de distância. Era lá que estava Clitemnestra, esposa de Agamenon, o líder do exército vitorioso. Em 1200 a.C. não havia celular ou rádio, então o jeito foi usar uma rede de fogueiras pré-posicionadas nos cumes mais altos de uma cadeia de montanhas.
Era uma mensagem simples: fogueira acesa significava “vitória”, fogueira apagada, “derrota”. A tática funcionou graças ao mesmo princípio do telefone sem fio: uma fogueira acesa no topo de uma montanha pode ser vista em um raio de dezenas de quilômetros em torno de si. O suficiente para o mensageiro que está no topo da próxima montanha observá-la e acender sua própria. E assim por diante, até o bit solitário e luminoso, de fogueira em fogueira, atingir seu objetivo do outro lado.
É um esforço aceitável nessa situação, mas não é o mais prático dos interurbanos. Pena que, mais de 3 mil anos depois, pouca coisa havia mudado na Europa. Até a invenção do código Morse e do telégrafo, no século 19, mensageiros a cavalo (ou, porque não, fogueiras?) ainda eram a maneira mais rápida de enviar um telegrama.
Dá para imaginar então a surpresa dos primeiros missionários europeus quando eles começaram a explorar a África no século 18 e descobriram que vários povos considerados “primitivos” na verdade eram capazes de transmitir mensagens complexas (e poéticas, como você descobrirá daqui a pouco) por distâncias enormes usando… tambores. Pois é, tambores.

Notícias de nascimentos, funerais e batalhas. Valia tudo. Como o som dos tambores ecoava por até 10 quilômetros quando eles eram tocados às margens de um rio, em menos de uma hora uma mensagem complexa poderia atingir os músicos de todas os núcleos populacionais em um raio de 150 quilômetros – que então se encarregariam de passá-la para frente.
Os europeus levaram um baile. Quando partiam em uma jornada, sua chegada já havia sido comunicada, via tambores, ao local de destino. Um passe de mágica para os padrões da época. O truque só seria revelado 200 anos depois, em um livro publicado em 1949 pelo britânico John Carrington – que se mudou para a África com 24 anos, se apaixonou pelo continente e lá ficou.
É o seguinte: muitas línguas da África subsaariana, ao contrário das latinas, são tonais. Isso significa, grosso modo, que uma mesma palavra, como “bola”, pode significar coisas diferentes se for dita com entonação de pergunta (“bola?”) ou de exclamação (“bola!”). Essa peculiaridade adiciona uma camada extra de significado à língua: além da articulação das consoantes e vogais, a melodia da voz transmite informações. Falar e cantar são quase a mesma coisa.
Instrumentos de percussão, ao contrário de nós, não são capazes de produzir vogais e consoantes. Mas alguns (é só lembrar das cuícas brasileiras) podem produzir melodias e até imitar razoavelmente bem os sons de animais. Ao usar os tambores para reproduzir a parte melódica de frases pronunciadas em língua tonal, os povos do sul da África conseguiam “falar” com a música.
Acontece que essa é uma simulação de fala meio abafada: sabe quando alguém que está escovando os dentes tenta falar com você de boca fechada? Dá para descobrir se o “hunf hunf” é uma pergunta, uma afirmação ou uma resposta. Mas é quase impossível identificar as palavras isoladamente.
Isso acontece porque seu interlocutor excluiu bits da mensagem. Uma camada de informação, que corresponde às vogais e consoantes, foi perdida. Só ficou a outra, a da entonação. Para compensar essa perda de informação, uma saída possível é adicionar mais palavras. Repetir a mesma frase de outros jeitos, até que a pessoa entenda, por cruzamento de informações, exatamente o que você quer dizer.
Os africanos sacaram isso: sendo redundantes, eles conseguiam fazer os tambores serem bem, bem específicos. Por isso, uma frase tão simples quanto “nasceu uma criança em no vilarejo de Bolenge” se tornava “As esteiras estão enroladas, sentimo-nos fortes, uma mulher veio da floresta, ela está na vila aberta, e basta por enquanto”.
Pois é, muito maluco. E metafórico. No fundo, porém, é a mesma coisa que fazemos em um país estrangeiro quando precisamos falar algo para um gringo: gesticular, usar metáforas e dar voltas desnecessárias para transmitir uma ideia.
E esse é, mais no fundo ainda, o resumo de toda a história das telecomunicações: um equilíbrio delicado entre a quantidade de bits que nós temos à disposição para transmitir mensagens, e os truques que usamos quando a quantidade de bits é insuficiente. Telégrafo, telefone e Skype foram só os próximos passos da mesma jornada.
Essa história sensacional – e muitas outras, ainda melhores – são contadas no livro A Informação, de James Gleick (que saiu na Brasil pela Cia. das Letras). Ele não é novo, mas vale dar uma boa procurada em sebos para encontrá-lo.
 Por Bruno Vaiano/Superinteressante

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