sexta-feira, 21 de julho de 2017

A montanha-russa dos idiomas

A diferença entre estrangeirismos e empréstimos linguísticos revela a qualidade das relações com outros povos
estrangeirismos
Foto: Pixabay

Há duas forças na língua que, segundo Saussure, se opõem simultaneamente: o espírito de campanário (esprit de clocher) e o espírito de intercurso. O primeiro visa a assegurar a estabilidade da língua diante de influências estrangeiras; o segundo opera de forma a permitir a entrada na língua de empréstimos e estrangeirismos.
O empréstimo é uma forma ou expressão linguística que uma língua aceita e adota de outra. O que distingue o empréstimo do estrangeirismo é que este ainda não se integrou à língua, enquanto aquele já é do domínio de seus usuários. Assim, palavras como “habitat” (latim), “menu” (francês), “flashback” (inglês) e “blitz” (alemão) são estrangeirismos. Mas termos como “balé” (fr. ballet), “chofer” (fr. chauffeur), “futebol” (ing. foot-ball), “chutar” (ing. shoot) são empréstimos, porque já estão incorporados à língua, com roupagem vernácula integral.
O empréstimo po­de ser externo, quando proveniente de outra língua (como “mantilha”, de origem castelhana), ou interno, quando proveniente de um dialeto, de um registro ou de um falar típico dentro da mesma língua (como “mixar” ou “mixaria”, da gíria dos ladrões; ou “boia”, comida na gíria militar).
Nem sempre o estrangeirismo adotado numa língua tem o mesmo sentido na língua de origem. Assim, a expressão “outdoor”, usada por falantes do português para designar o quadro em que se fazem anúncios em via pública, não tem esse sentido em inglês, em que outdoor significa “ao ar livre”. O que nós denominamos “out-door” chama-se em inglês billboard.
O francês rendez-vous significa “encontro”, sem a conotação pejorativa de seu uso em português.
A expressão bi Gott (“por Deus”) do médio alto-alemão, usada como invocação para reforçar uma afirmativa, no século 15, entrou na língua francesa como “bigot”, com o sentido de “carola”, pessoa muito devota.

O termo alemão Blitz, que como “blitz” usamos para designar uma batida policial feita de surpresa, se origina da expressão Blitzkrieg (guerra- -relâmpago), que designava os ataques rápidos e inesperados dos alemães na II Guerra, mas, na língua de origem, Blitz significa relâmpago, e não batida policial.
Decalque 
O empréstimo, muitas vezes, faz “turismo”: passa de uma língua A para uma língua B e volta à língua A com modificações. O português “feitiço” deu origem ao francês fetiche, que voltou ao português com outro sentido. O substantivo boeuf, que em francês significa “boi”, foi emprestado ao inglês, que o adotou como beef na palavra beefsteak (fatia de boi), que voltou ao francês como bifteck (em português, “bife”).

Um tipo especial de empréstimo é o decalque, termo com que se designa a tradução literal, na língua A, de uma palavra ou expressão de uma língua B, às vezes com a subversão do significado tradicional na língua A dos elementos que constituem a tradução. Por exemplo, “cachorro-quente” é decalque do inglês hot dog; “salvar”, com o sentido de “guardar num arquivo do computador”, é decalque do inglês save; “realizar”, com o sentido de “entender, perceber”, é decalque do inglês realize.
A utilização de “gênero” como sinônimo de “sexo” é decalque do inglês gender, numa confusão condenável, porque “gênero” nunca existiu em português como sinônimo de sexo (sexo é distinção semântica, e gênero é distinção gramatical, isto é, uma palavra sempre do gênero feminino, como “criança”, por exemplo, pode designar pessoa do sexo masculino; e vice-versa: uma palavra do gênero masculino, como “mulherão”, designa pessoa do sexo feminino).
Equívoco
A expressão “luta de classes”, que designa, no marxismo, o conflito entre classes sociais ou entre o proletariado e a burguesia, é um decalque do alemão Klassenkampf. Outros decalques: “quebra-luz” (do fr. abat-jour), “arranha-céu” (do ing. sky-scraper), “balípodo” ou “ludopédio” (neologismos de Castro Lopes para substituir o ing. foot-ball), “autoestrada” (do fr. auto-route) etc.

Às vezes o decalque nasce de uma tradução inadequada. Na expressão Rutschbahn ou Rutschberg, que significa montanha (Berg) de escorregamento (Rutsch), uma atração alemã em parque de diversões, o nome Rutsch foi indevidamente traduzido para o francês como se fosse o adjetivo russe, e a atração ficou conhecida como montagne russe (montanha-russa).
Futebol
Um estrangeirismo de uso no Brasil, apenas parcialmente adaptado ao vernáculo, é a palavra “gol”. Alguns gramáticos e o dicionário Houaiss, equivocadamente, postularam a existência de um plural “gois”, apenas virtual e hipotético. Na verdade, “gol” é apenas a adaptação gráfica do inglês goal, já que todas as palavras oxítonas terminadas em -ol, em português, têm a vogal tônica aberta (lençol, terçol, futebol, etc.); se “gol” mantém a vogal fechada é porque não é palavra portuguesa, e o plural “gols” é legitimado.

Neologismo é uma palavra inventada (ou com sentido novo). Os campeões de neologismos no Brasil são Castro Lopes e Oduvaldo Cozzi. Poucos neologismos de Lopes conseguiram alguma aceitação, como “protofonia” (ouverture) ou “convescote” (piquenique). A maioria foi rejeitada: cinesíforo (chofer), festimana (matinée), demostasia / operinsurreição (greve), ludâmbulo (turista), lucivelo (abajur), etc. Mas, no futebol, Cozzi foi mais feliz com seus neologismos: escanteio (corner), zagueiro (back), impedimento (off side), falta (foul), penalidade máxima (penalty). Pena que “tento” (goal) e “arqueiro” (goalkeeper) tenham tido pouca aceitação.
 
 
 
 

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