No Laboratório de Leitura montado na Escola Paulista de Medicina (EPM) da Universidade Federal de São Paulo que Dante Gallian pôde perceber como a literatura impactava os leitores de forma afetiva e reflexiva, influenciando diretamente em suas vidas. “Como estávamos num ambiente acadêmico, começamos a abordar essa experiência como um objeto de estudo. Fomos constituindo uma linha de pesquisa que hoje congrega dezenas de pesquisadores e que apresenta uma grande produção científica com alta qualidade. Hoje, temos pesquisado os efeitos da aplicação do Laboratório não só no campo da saúde – na formação ética e na humanização dos futuros profissionais; como meio recuperação de pacientes psicóticos… –, mas também no âmbito das grandes corporações e setores específicos da sociedade, como grupos da terceira idade”, conta.
Dante é formado em História pela USP, onde fez seu mestrado e doutorado. Seu pós-doutorado veio pela École des Hautes Études em Sciences Sociales, de Paris, e desde 1999 é professor e diretor do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde da EPM. Grande entusiasta da leitura – acredita que ler é um ato revolucionário -, teve sua vida impactada por clássicos como “A Odisseia”, de Homero; “A Divina Comédia”, de Dante; “Dom Quixote”, de Cervantes; “Hamlet”, de Shakespeare; “Os Irmãos Karamázov”, de Dostoiévski e “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa.
Por ter aprimorado sua experiência de “ser e estar no mundo” graças aos livros que enveredou suas pesquisas para essa área. Os estudos resultaram em “A Literatura Como Remédio – Os Clássicos e a Saúde da Alma”, obra lançada há pouco pela Martin Claret, na qual fala sobre os resultados alcançados no Laboratório de Leitura. “Ali, a leitura compartilhada tem se apresentado como um elemento coadjuvante de grande poder em pacientes psicóticos ou como meio de combate à depressão em pacientes da terceira idade. Sendo um remédio que afeta primordialmente a alma, a psique, a literatura ajuda a reverter e mesmo a curar enfermidades de origem psíquica e emocional, que são as mais prevalentes no mundo atual”, diz na entrevista abaixo.
Dentre os problemas que um bom livro pode combater, Dante aponta principalmente para um que define como “predominante e crônico em nossos dias”: a ansiedade, algo diretamente relacionado à constante pressa a qual quase todos parecem estar submetidos. “Vivemos um tempo em que tendemos a privilegiar tudo o que é imediato e circunstancial e a desprezar tudo o que é permanente e essencial. Vemo-nos, cada vez mais, transformados em máquinas de produção e consumo e isso nos desumaniza e nos faz doentes. Estamos sempre extremamente ocupados, mergulhados numa dinâmica operacional de resolução de problemas e realização de tarefas, esquecendo de amar, de olhar, de contemplar o mundo, a vida, as pessoas que nos cercam”.
Quais são as principais doenças e males contemporâneos que a literatura pode ajudar a combater? Como?
Minha experiência pessoal e de pesquisa aponta que a literatura pode ajudar a combater inúmeros males, porém creio que o principal é justamente aquele que se apresenta como predominante e crônico em nossos dias: a ansiedade. Ao nos “sequestrar”, através de uma narrativa envolvente e uma trama interessante, a literatura tem o poder de nos lançar numa outra espacialidade e temporalidade.
Enquanto estamos lendo, nos esquecemos, por um tempo, dos nossos problemas, das premências que muitas vezes nos oprimem. Esta “fuga” da realidade apresenta-se como algo desestressante e terapêutico, porque libertador. Ao fecharmos o livro, percebemos que os nossos problemas e premências continuam lá, porém nós não somos mais os mesmos. A leitura não apenas nos levou a uma outra dimensão de espaço e tempo, mas também contribuiu para olharmos a nossa realidade a partir de uma outra perspectiva.
A experiência da leitura, ainda mais quando dinamizada e potencializada pela dinâmica do Laboratório de Leitura, pode nos ensinar a olhar e interpretar a vida de uma forma nova, mais ampla, profunda, ajudando a relativizar certas visões e pontos de vista por demais obtusos e pessimistas. Assim, ao mesmo tempo em que nos permite “escapar” por um tempo das situações que são fonte de ansiedade, a literatura nos permite voltar a estas mesmas situações mais ricos e fortalecidos, prontos para enfrentá-las com um novo espírito e um novo olhar.
A literatura pode, de alguma forma, ajudar diretamente na cura ou tratamento de doenças extremas, como o câncer ou o Alzheimer?
Apesar de não me dedicar a pesquisas assim tão direcionadas, é possível dizer que muitos pesquisadores têm demonstrado, por exemplo, quanto a leitura de obras clássicas da literatura podem interferir na dinamização de ligações e processos neurais importantes, impactando positivamente em tratamentos de doenças degenerativas como o Alzheimer. Mais concretamente, posso afirmar que não apenas a leitura, mas a leitura compartilhada no âmbito do Laboratório de Leitura, tem se apresentado como um elemento coadjuvante de grande poder em pacientes psicóticos ou como meio de combate à depressão em pacientes da terceira idade. Sendo um remédio que afeta primordialmente a alma, a psique, a literatura ajuda a reverter e mesmo a curar enfermidades de origem psíquica e emocional, que são as mais prevalentes no mundo atual.
Quais livros e autores você destaca pelo poder de cura que possuem?
Creio que praticamente todos os grandes clássicos e os grandes autores têm um poder terapêutico incomensurável, desde que bem trabalhados e administrados. Baseando-me, entretanto, em algumas experiências, destacaria, por exemplo, Miguel de Cervantes, que através do seu Dom Quixote nos ajuda a relativizar a rígida polarização que a Modernidade criou entre “realidade” e “ficção”; Shakespeare, que através de suas tragédias nos possibilita fazer um mergulho no mais profundo das nossas motivações e paixões; e Dostoiévski, que através de personagens como o Príncipe Mitchikin, do romance “O Idiota”, ou dos filhos de Fiodor Karamázov, de “Irmãos Karamázov”, nos permite encontrar a esperança na experiência mais profunda do desespero.
A experiência do Laboratório de Leitura tem me ajudado a elaborar uma verdadeira farmacopeia literária, que pretendo explorar cada vez mais, tanto no mundo acadêmico quanto no mundo corporativo e também na sociedade como um todo. Todos estamos muito necessitados desse remédio.
Você escreve no livro que ler é um ato revolucionário. Por quê?
Parafraseando Blaise Pascal [filósofo francês], a leitura é uma diversio conversio; ou seja, algo que nos possibilita sair de nós mesmos – o que é próprio da diversão – e, ao mesmo tempo, algo que, quase sem percebermos, nos lança dentro de nós mesmo – o que é próprio da conversão, no sentido filosófico e psicológico do termo. A literatura converte divertindo e este é um autêntico movimento revolucionário, na medida em que gera uma circularidade existencial extremamente propulsiva, transformadora. Percebemos em nossas pesquisas que a dinâmica do Laboratório de Leitura potencializa essa virtude revolucionária que literatura tem per si.
Ao longo de “A Literatura Como Remédio” você joga com a questão do “leitor extremamente ocupado”. Hoje, muitas pessoas dizem não ler porque estão, justamente, extremamente ocupadas. Qual o remédio que você recomenda para esses que não têm tempo para nada?
Em meu livro cito um autor francês, Daniel Pennac, que num ensaio genial intitulado “Como um Romance” afirma que “o tempo para ler é como o tempo para amar: é sempre um tempo roubado”. Vivemos um tempo em que tendemos a privilegiar tudo o que é imediato e circunstancial e a desprezar tudo o que é permanente e essencial. Vemo-nos, cada vez mais, transformados em máquinas de produção e consumo e isso nos desumaniza e nos faz doentes. Estamos sempre extremamente ocupados, mergulhados numa dinâmica operacional de resolução de problemas e realização de tarefas, esquecendo de amar, de olhar, de contemplar o mundo, a vida, as pessoas que nos cercam. A leitura de um bom livro pode ser uma fuga, um antídoto frente a esta dinâmica desumana e patológica em que vivemos.
O remédio é realmente “roubar”; roubar tempo que talvez dediquemos de forma exagerada às redes sociais, à televisão e a outras atividades que ocupam nosso tempo de ócio com sempre mais do mesmo. Ao nos darmos a oportunidade de fazer a experiência da leitura dos clássicos encontraremos algo tão bom e tão libertador que, em breve, descobriremos tempo e meios inéditos de nos dedicarmos a esta atividade “subversiva”, tal como os amantes que inventam mil jeitos e oportunidades para estarem juntos. Desde que eu me apaixonei pela literatura encontrei meios novos e criativos para me dedicar à leitura; todos os dias. Leio nos intervalos “mortos”, na fila do banco e até enquanto caminho para o trabalho…
Dica da Sonia Junqueira
Por Rodrigo Casarin, no Página Cinco/Livros e Pessoas
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